domingo, 25 de setembro de 2011

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E POLÍTICAS PÚBLICAS.

                  

            Diferentemente dos inúmeros estudos existentes, de excelente qualidade, esta pesquisa busca investigar não apenas a chamada violência doméstica, mas os vários tipos de homicídio – tentativa ou consumação – de mulheres, de todas as faixas etárias. Ela investigou e procurou comparar como este crime era tratado: 1. pela mídia (especialmente jornais de 1991 e de 2000); pelo rádio e televisão; 2. nos Boletins de Ocorrência das Delegacias de Policia da capital de São Paulo (do ano de 1998); 3. Nos Processos Judiciais, através de uma amostra representativa dos cinco Tribunais do Júri da Capital de São Paulo (de 1997). Desejava saber como a mídia tão resistente a principio se comportava na passagem do século XXI face à violência contra a mulher, o que os BOs registravam e como eram julgados os assassinos/as de mulheres. Os complexos resultados obtidos revelaram mudanças em alguns segmentos e um concomitante mecanismo que retroalimenta a antiga violência nas relações sociais de gênero. Concluindo propõe-se a implantação de uma política transversal de gênero para enfrentar a violência.
      Violência de gênero: um problema mundial e antigo
AGREDIR, matar, estuprar uma mulher ou uma menina é fatos que têm acontecido ao longo da história em praticamente todos os países ditos civilizados e dotados dos mais diferentes regimes econômicos e políticos. A magnitude da agressão, porém, varia. É mais freqüente em países de uma prevalecente cultura masculina, e menor em culturas que buscam soluções igualitárias para as diferenças de gênero. Organismos internacionais começaram a se mobilizar contra este tipo de violência depois de 1975, quando a ONU realizou o primeiro Dia Internacional da Mulher. Mesmo assim, a Comissão de Direitos Humanos da própria ONU, apenas a dez anos, na Reunião de Viena de 1993, incluiu um capítulo de denuncia e propõe medidas para coibir a violência de gênero.
No Brasil, sob o pretexto do adultério, o assassinato de mulheres era legítimo antes da República. Koerner mostra que a relação sexual da mulher, fora do casamento, constituía adultério – o que pelo livro V das Ordenações Filipinas permitiam que o marido matasse a ambos. O Código Criminal de 1830 atenuava o homicídio praticado pelo marido quando houvesse adultério. Observe-se que, se o marido mantivesse relação constante com outra mulher, esta situação constituía concubinato e não adultério. Posteriormente, o Código Civil (1916) alterou estas disposições considerando o adultério de ambos os cônjuges razão para desquite.
Entretanto, alterar a lei não modificou o costume de matar a esposa ou companheira.
 O movimento feminista do fim do século XIX e começo do século XX
Desde a metade do século XIX até depois da Primeira Guerra Mundial, o panorama econômico e cultural do Brasil mudou profundamente. A industrialização e a urbanização alteraram a vida cotidiana, particularmente das mulheres, que passaram a, cada vez mais, ocupar o espaço das ruas, a trabalhar fora de casa, a estudar etc. Vale à pena ler a análise de Susan Besse (1999) para se compreender o quanto essa transformação da infra-estrutura econômica, mais a alfabetização das mulheres, o cinema, os meios de transporte, a substituição de bens produzidos em casa pelos oferecidos pelas casas comerciais, alterou inteiramente o ritmo de vida e os contatos que as mulheres e homens passaram a desfrutar. Essas mudanças trouxeram o contato com comportamentos e valores de outros países, os quais passaram a ser confrontados com os costumes patriarcais ainda vigentes embora enfraquecidos.
Dentre estas mudanças destacou-se a discussão sobre o casamento. Mulheres das classes médias e altas, graças à educação e ao trabalho remunerado, adquiriram maior "poder social e econômico" (Besse, 1999, p. 41) e passaram a protestar contra a "tirania dos homens" no casamento, sua infidelidade, brutalidade, abandono – temas freqüentes entre escritoras, jornalistas e feministas dos anos de 1920 (Besse cita, entre elas, Cecília Bandeira de Melo Rebelo de Vasconcelos, que escrevia sob o pseudônimo de Chrisanthème, Elizabeth Bastos, Iracema, Amélia de Resende Martins, Andradina de Oliveira etc.) além das inúmeras leitoras da Revista Feminina. Já então se apontava que maridos tinham sido assassinados por mulheres brutalizadas (Besse, 1999, p. 46). A interpretação dessas queixas era traduzida como "crise" na família e o no casamento (Besse, 1999, p. 41) cujos responsáveis seriam o trabalho feminino e a paixão.
Naquela época, como hoje, afirmava-se que o trabalho feminino fora de casa provocava a desagregação da família. Daí o Estado ter incluído no Código Civil (1916), para proteger a família (mesmo a pobre), que a mulher deveria ter autorização do marido para poder trabalhar.
Quanto ao casamento, reagia-se afirmando que era necessário retirar dele a romântica união por amor, substituindo-a pelo amor "civilizado", dotado de razão, excluindo a paixão, responsável pelos "crimes passionais sanguinários" (Peixoto apud Besse, 1999, p. 69).
Os crimes passionais, um dos mais graves problemas da época, constituíam uma verdadeira "epidemia" para algumas feministas. Encabeçando os movimentos contra estes crimes, Promotores Públicos como Roberto Lyra, Carlos Sussekind de Mendonça, Caetano Pinto de Miranda Montenegro e Lourenço de Mattos Borges fundaram o Conselho Brasileiro de Higiene Social. Pretendiam coibir e punir os crimes passionais então tolerados pela sociedade e pela Justiça. Não era propriamente a defesa das mulheres que eles visavam, mas pretendiam, efetivamente, proteger a instituição família (Besse, 1999, p. 90).
A atuação das mulheres nas décadas de 1920 e 1930, mais a ação dos Promotores Públicos e do Juiz Nelson Hungria, apontam o gravíssimo problema do assassinato de esposas e companheiras, até hoje não resolvido, se é que não foi incrementado.
O movimento dos Promotores e das feministas alcançou êxito relativo, embora o assassinato por amor continuasse a ocorrer e os assassinos a serem absolvidos.
 "Quem ama não mata"
Um forte movimento pela defesa da vida das mulheres e pela punição dos assassinos voltou a ocorrer na década de 1970, tendo seu auge após 30 de dezembro de 1976, quando Ângela Diniz foi morta por Doca Street, de quem ela desejava se separar.
A morte de Ângela e a libertação de seu assassino levantaram um forte clamor das mulheres que se organizaram em torno do lema: "quem ama não mata". Pela segunda vez na história brasileira, repudiava-se publicamente que o amor justificasse o crime.
Acostumado à subserviência conservadora, Lins e Silva, defensor de Doca, revelou seu espanto ante a extraordinária pressão popular que acompanhou o julgamento. O caso teve enorme repercussão não só no Brasil, mas também no exterior, havendo "publicidade nunca vista" sobre este caso, reclamou Lins e Silva (1991, p. 295). Grande controvérsia ocupou a imprensa (Blay, 2003) acirrando-se a polêmica contra os direitos humanos das mulheres. Os jornalistas Paulo Francis e Tristão de Ataíde mostraram-se indignados contra as feministas e suas manifestações públicas que, segundo eles, pré-condenaram o réu; Lins e Silva (1991, p. 295) irritou-se com a repercussão que transformou uma "briga entre amantes em acontecimento nacional". Referiu-se ao "incidente" como se a vítima estivesse viva. Os prestigiados jornalistas e o advogado consideraram ilegítima a pressão da opinião pública nestes crimes contra mulheres justificados pelo amor.
Dentre as matérias publicadas na época, artigo de Carlos Heitor Cony na revista Fatos e Fotos – Gente, assim descrevia o crime:
eu vi o corpo da moça estendido no mármore da delegacia de Cabo Frio. Parecia ao mesmo tempo uma criança e boneca enorme quebrada... Mas desde o momento em que vi o seu cadáver tive imensa pena, não dela, boneca quebrada, mas de seu assassino, que aquele instante eu não sabia quem era (grifo meu).
O jornalista titubeia em sua opinião sobre o crime. De um lado, cita a Promotoria que acusava Street de libertinagem, cafetinagem, e conclui: "Mas outros cafetões, outros libertinos e safados não se tornaram assassinos". Por outro lado, em benefício do assassino, Cony entrevista o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que afirma "[...] o único crime respeitável, que não condenaria com rigor, era o passional... Crime passional qualquer um comete, até eu". Cony conclui: "A chamada privação de sentidos provocada pela paixão pode fazer do mais cordial dos homens um assassino".
   Ensinando a defender os que matavam "por amor"
Dentro do princípio inquestionável de que todos têm direito a defesa, a culpa deve ser provada, ensina a academia como mecanismo da argumentação. O modelo paradigmático da didática de defesa dos assassinos "por amor" encontra-se no livro de Evandro Lins e Silva A defesa tem a palavra (1991). Nele, o jurista ensina os jovens advogados a defender um assassino, mesmo que confesso, e toma como modelo a defesa que ele próprio fizera de Doca Street, o assassino de Ângela Diniz.
Doca Street matou Ângela Diniz e confessou o crime alguns dias depois. Convivera com ela apenas três meses. Argumentava a Promotoria (auxiliada pelo advogado Evaristo de Morais, contratado pela família de Ângela), que ela não suportava mais sustentar um companheiro ciumento, agressivo e violento. Depois dos poucos meses de conturbada convivência, durante os quais houve várias tentativas de rompimento, Ângela mais uma vez mandou Doca sair de sua casa em Cabo Frio (Estado do Rio de Janeiro). Este fingiu se retirar da residência arrumou as malas, colocou-as em seu automóvel, mas, minutos depois retornou munido de uma Bereta. Perseguiu-a no banheiro e a matou com vários tiros, especialmente no rosto e no crânio.
A Promotoria descreve Doca como pessoa que não trabalhava, sem endereço fixo, e que tivera várias mulheres, filhos dentro e fora do casamento, problemas criminais na juventude, homem violento e possessivo.
Como se contrapor ao perfil descrito pela Promotoria? Como demonstrar que Doca era pessoa absolutamente idônea, trabalhadora, bom pai, bom marido e com residência fixa?
O hábil defensor ensina, passo a passo, a construção desta imagem. São duas as principais estratégias. Primeiro era necessário demonstrar o bom caráter do assassino. Segundo, era importante denegrir a vítima, mostrar como ela o levara ao ato criminoso.
Doca, que não tinha profissão conhecida, passou a ser descrito como pessoa que vivia de comissões obtidas pela venda de letras de câmbio ou títulos para Bancos de Investimento. Bastaram uns três depósitos bancários para atestar esta fonte de renda. Quanto a ter se relacionado com várias mulheres, isto não é negado, porém, afirma-se que ele só amara uma: Ângela Diniz.
Mas restava ainda uma pergunta: como foi possível que pessoa tão correta matasse uma mulher que conhecera há apenas três meses e pela qual nutria paixão tão fulminante? Como defender este impulso criminoso perante o Tribunal do Júri? Ensina Evandro Lins e Silva (1991, p. 27): "no Tribunal do Júri, o que se julga é o homem, muito mais do que o crime". Cabe ao defensor, portanto, munir-se de todas as informações possíveis para defender seu cliente. O bom advogado deve penetrar nos sentimentos que o levaram a cometer o crime, e, para captar estas emoções, deve servir-se da literatura. Evandro conta ter se preparado lendo A servidão humana, onde reviu as "penas de Philip, sofrendo pelo amor da insensível Mildred". Para entender a rejeição sentida pelos amantes,
Medi a extensão do martírio dos apaixonados repelidos pela mulher amada. Reli a defesa de Ferri, bela, magistral, do jovem chileno Carlo Cienfuegos, que matou em Roma a amante, Bianca Hamilton, mulher fatal e sedutora, que o levou ao desvario, ao crime e à tentativa de suicídio... (Lins e Silva, 1991, p. 24).
Enfim, municiou-se para apresentar os sentimentos de rejeição, paixão, desvario, tudo o que pudesse comover o júri e levá-lo a inocentar o assassino da "mulher amada", cujo maior pecado era não aceitar tal amor.
Nas escolas de Direito, ensina-se o mecanismo da preparação da defesa. Mas será que é dada a mesma ênfase aos direitos humanos das mulheres, dos pobres, dos e das negras e demais minorias?
 
As organizações não governamentais (ONGs) feministas
Ao longo das décadas de 1960 e 1970, feministas de classe média, militantes políticas contra a ditadura militar e intelectuais foram se somando a sindicalistas e trabalhadoras de diferentes setores. Certamente, unia-as uma visão democrática e igualitária dos direitos da mulher que suplantava diferenças partidárias e ideológicas. Formou-se um vasto movimento unido de mulheres, se considerarmos que o inimigo era comum. (É claro que, em contrapartida, o movimento feminino conservador, ligado especialmente à igreja católica e ao movimento militar, também se organizou). Ao movimento feminista se aglutinou uma série de grupos que atuaram cotidianamente a favor dos direitos a melhores condições de vida, pela anistia, pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. A formação de entidades voltadas a abrigar mulheres vítimas de violência doméstica não tardou a se formar. Por todo o Brasil grupos de ativistas, voluntárias, procuravam enfrentar todos os tipos de violência: estupros, maus tratos, incestos, perseguição a prostitutas, e infindáveis violações dos direitos humanos de mulheres e meninas. Diferentemente das décadas de 1910 e 1920, agora as denúncias destes crimes escondidos na e pela família tornaram-se públicos. Recebidos inicialmente com descrédito e sarcasmo pela mídia em geral, aos poucos foram reconhecidos (ver mais adiante essa transformação na imprensa escrita).
Muito esforço custou às mulheres da sociedade civil arcar com esta fundamental atividade.
     Os Conselhos da Condição Feminina e as Delegacias de Defesa da Mulher
Com a anistia de 1979, a eleição direta de governadores em 1982 e a reorganização partidária, o cenário feminista se fortaleceu, mas se segmentou em grupos partidários.
Para fazer frente às demandas de igualdade de gênero foi criado, em 1983, o primeiro Conselho Estadual da Condição Feminina em São Paulo. Em 1985, criou-se a primeira Delegacia de Defesa da Mulher, órgão eminentemente voltado para reprimir a violência contra a mulher (Massuno, 2002).
Concomitantemente, na sociedade civil, como já apontamos, vigoravam vários grupos feministas de apoio às mulheres vítimas. Intenso trabalho, quase sempre com escassos recursos e muito voluntariado, tentava suprir uma lacuna que agora, timidamente, começava a ser encampada pelo Estado.
Nos anos anteriores, as mulheres que recorriam às Delegacias em geral sentiam-se ameaçadas ou eram vítimas de incompreensão, machismo e até mesmo de violência sexual. Com a criação das Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) o quadro começou a ser alterado. O serviço nas DDMs era e é prestado por mulheres, mas isto não bastava, pois muitas destas profissionais tinham sido socializadas numa cultura machista e agiam de acordo com tais padrões. Foi necessário muito treinamento e conscientização para formar profissionais, mulheres e homens, que entendessem que meninas e mulheres tinham o direito de não aceitar a violência cometida por pais, padrastos, maridos, companheiros e outros. Esta tarefa de reciclagem deve ser permanente, pois os quadros funcionais mudam e também os problemas.
Alterar essa relação de subordinação de gênero foi o início de uma revolução parcialmente bem-sucedida nos papéis sociais. Os crimes de gênero continuaram.
Cada vez mais estudos verificaram que não eram apenas maridos, mas outros parceiros também agrediam e matavam as mulheres sob os mais diversos pretextos.
 
Direitos humanos e homicídio de mulheres
Em 1995, dei inicio à pesquisa sobre homicídio de mulheres para verificar como este crime era tratado: 1. pela mídia (especialmente jornais de 1991 e de 2000); 2. nos Boletins de Ocorrência das Delegacias de Polícia da capital de São Paulo (do ano de 1998); 3. nos Processos Judiciais, por meio de uma amostra representativa dos cinco Tribunais do Júri da Capital de São Paulo (de 1997). Desejava saber como a mídia, tão resistente a princípio, comportava-se na passagem do século XXI, o que os BOs registravam e como eram julgados os assassinos (as) de mulheres.
Diferentemente dos inúmeros estudos existentes, de excelente qualidade, esta pesquisa buscava investigar não apenas a chamada violência doméstica, mas os vários tipos de homicídio – tentativa ou consumação – de mulheres de todas as faixas etárias.
Entre os resultados alcançados verificou-se:
Pelas notícias de jornais
• Matam-se pessoas do sexo feminino de todas as idades, desde bebês até mulheres com mais de setenta anos. Prevalece a faixa compreendida entre 22 e trinta anos.
• Os jornais de 1991 indicavam que 22% dos crimes eram motivados por tentativas de separação, ciúme, ou suspeita de adultério. Em 2000, estes mesmos motivos cresceram e foram responsáveis por 28% dos crimes.
• O filicídio, cometido por pais ou mães, não é raro no Brasil e nem em São Paulo. Em 1991, 8% das meninas assassinadas tinham menos de dez anos; a percentagem é quase igual em 2000: 7%. Pais e mães nem sempre matam pelas mesmas razões. No caso das mães, o filicídio é atribuído, em geral, a dificuldades econômicas, abandono pelo pai da criança, a chamada e pouco conhecida depressão pós-parto, ou por vingança ao companheiro. No caso dos homens, o filicídio aparece, quase sempre, associado à vingança contra a mulher: um homem abandonado não se contenta em se vingar da companheira, ele mata também os (as) filhos (as) e eventualmente outras pessoas que tentam detê-lo.
• A "violência urbana" (balas perdidas, assaltos e, sobretudo crimes em áreas de lazer) que, em 1991, era responsável por 17% dos crimes noticiados, reduziu-se relativamente, sendo substituída pelo aumento das ocorrências ligadas à droga (18% em 2000).
• O conteúdo do noticiário mostra uma clara tendência de mudança de linguagem. Se até a década de 1980 as vítimas eram apresentadas como causadoras de sua própria morte e havia um visível apoio aos assassinos – que seriam "levados" ao crime pela suposta conduta infiel da mulher ou por ela querer romper um relacionamento, na última década do século XX o noticiário se tornou mais investigativo, relativamente neutro e com certa tendência a questionar julgamentos que facilitavam a fuga dos réus.
• Destaco ainda que o espaço destinado a estas notícias, o local da publicação no jornal assim como aspectos da linguagem, refletem a classe social da vítima e do agressor.
Rádio e televisão
• Contraditoriamente, o rádio e a televisão continuam a reproduzir em seus programas musicais os antigos sucessos em que o homem mata a mulher que não mais quer a "felicidade" que ele lhe proporcionava. Veja-se como exemplo a antiga e sempre tocada canção Cabocla Teresa (Raul Torres e João Pacífico) cujos versos cantam, sem remorso, o assassinato de Teresa:
Vancê, Tereza, descansa/ Jurei de fazer vingança/ Pra mordi de nosso amor
Há tempos eu fiz um ranchinho/ Pra minha cabocla morar
Pois era ali nosso ninho/ Bem longe desse lugar/ No alto lá da montanha
Perto da luz do luar/ Vivi um ano feliz/ Sem nunca isso esperar
E muito tempo passou/ Pensando em ser tão feliz/ Mas a Tereza, doto
Felicidade não quis/ Pus meus sonhos nesse olhar/ Paguei caro meu amor
Por mordi de outro caboclo/ Meu rancho ela abandonou/ Senti meu sangue ferverJurei a Tereza matar/ O meu alazão arriei/ E ela fui procurar/ Agora já me vinguei. É esse o fim de um amor/ Essa cabocla eu matei/ É a minha história doto.
Os programas televisivos, que dramatizam os crimes passionais, estupros seguidos de morte, incesto, trazem uma dupla mensagem: de um lado acusam o criminoso, mas, ao mesmo tempo, romantizam esse tipo de crime. Esses veículos tendem a reproduzir a antiga versão de que a "vítima é responsável por sua morte" e, muitas vezes, ao reiterarem imagens e reconstituições dos supostos fatos exaltam os crimes.
Assim, o noticiário mostra um processo contraditório de mudança: ao mesmo tempo em que não mais se aceita o "matei por amor" noticia-se um incremento nos crimes que tem tais justificativas.
Boletins de ocorrência (BOs)
Pesquisamos os Boletins de Ocorrência (BOs) nas Delegacias Gerais e não nas Delegacias de Defesa da Mulher, pois estas, em razão da competência legal, estavam impedidas de registrar homicídios de mulheres até 1996. A Secretaria de Segurança recebe uma cópia de todos os BOs, mas, ao divulgar suas análises estatísticas, não informa o sexo da vítima, uma grande dificuldade para o conhecimento dos fatos que bem indica a desimportância das relações de gênero e a predominância de uma visão apenas masculina. Foi um longo e penoso trabalho separar, manualmente, dentre os milhares de BOs de 1998, aqueles em que havia vítimas femininas.
• Resultou o levantamento de 623 ocorrências com 964 vítimas, das quais 669 mulheres e 294 homens (em um BO o sexo não estava identificado). Entre as 669 vítimas mulheres, 285 eram vítimas de homicídio e 384 de tentativa de homicídio (ver notas).
• A análise dos BOs mostrou que, na metade das ocorrências, o (a) agressor (a) é desconhecido. Entre os identificados, quando a vítima é mulher, 90% dos autores são homens.
• A maioria das vítimas – 62% – são mulheres brancas, 7% são negras e 30% pardas.
• Constatamos que a maioria tem alfabetização de nível primário (74%), embora 14% tenham o secundário e 3% o universitário.
• Confirmando os dados da imprensa, as vítimas estão na faixa etária dos 22 aos trinta anos.
• O perfil socioeconômico e etário dos agressores assemelha-se ao das vítimas.
• Apesar das inúmeras lacunas que os BOs apresentam, observou-se que cinco em cada dez homicídios são cometidos pelo esposo, namorado, noivo, companheiro, "amante" (sic). Se incluirmos ex-parceiros, este número cresce: em sete de cada dez casos as mulheres são vítimas de homens com os quais tiveram algum tipo de relacionamento afetivo. É marcante a dificuldade com que homens aceitem que a mulher rompa um relacionamento (cerca de dois em cada dez crimes são cometidos por ex-parceiros).
• Embora perdure a ideologia de que o lar é um lugar seguro, as relações familiares não são pacíficas: 12% dos homicídios ou tentativas são de responsabilidade do pai, mãe, filho, padrasto, sogra, ou seja, entre os agressores conhecidos, 66% são parentes da vítima feminina.
• Qualquer instrumento serve para agredir – facas, ácido, fogo, madeira, ferro, além das próprias mãos – mas em sete de cada dez casos o revólver é usado.
Processos Criminais nos Tribunais do Júri os BOs, nos casos de homicídio e tentativa de homicídio, e depois Inquéritos Policiais – fase de instrução policial – quando encerrados são remetidos ao Poder Judiciário, onde nova fase de instrução será aberta para final julgamento. Para facilidade de compreensão, denomino Processo Criminal (PC) essa fase que se abre na Justiça. A localização dos processos demandou cerca de dois anos de pesquisa, a partir do exame dos livros de registro dos Fóruns Criminais da Capital, e mais um ano e meio para localização e exame dos mesmos nos Tribunais do Júri da Barra Funda, Jabaquara, Santo Amaro, Pinheiros e Penha. De um total de 8.805 processos, após procedimentos de seleção de uma amostra representativa, deveríamos analisar cem casos. Prevendo problemas, que de fato ocorreram, resultou uma amostra representativa de 81 Processos Judiciais.
• Consistentemente com os achados anteriores, observamos que as vítimas são mulheres jovens, de 22 a trinta anos predominantemente, de cor branca, cuja escolaridade é 1º grau incompleto, com profissão "não qualificada" originárias do Estado de São Paulo.
• Viviam em casas precárias de alvenaria ou apartamentos tipo conjunto habitacional, predominantemente na Zona Leste.
• São solteiras, na maioria, têm filhos, sendo que uma em cada quatro teve filhos com os companheiros com quem viviam quando foram vitimadas.
• Apenas 9% destas vítimas tinham antecedentes criminais.
• Cerca de 2% estavam grávidas quando foram assassinadas ou sofreram tentativa, fato que não impediu ou até motivou o crime.
• Agressores, mais do que vítimas, têm nível educacional de 1º grau incompleto (33% e 28%) e está na mesma faixa etária delas.
• Cerca de 5% das vítimas têm nível universitário (completo ou não) o qual não aparece entre os réus, o que não deve ser interpretado literalmente, mas merece cuidadosa análise. Não estariam os criminosos de nível universitário entre os que fugiram?
• As informações contidas nos processos são muito incompletas: em 30% dos casos não se tem informação sobre o nível educacional das vítimas, suas profissões, condição de moradia, antecedentes criminais e até mesmo se elas estavam grávidas ou não. Também não há informação se tinham filhos.
• Constatou-se que a maioria das vítimas (28%) tinha profissão "não qualificada" seguidas pelas "do lar" (23%). Cerca de 8% eram estudantes de vários níveis. Entre os réus, havia igual porcentagem de qualificados e não-qualificados (20%), 10% eram comerciantes. Praticamente não havia desempregados declarados.
• Os réus têm uma posição socioeconômica um pouco mais elevada do que as mulheres. De modo geral, trata-se de uma população de baixa ou média renda.
• Observa-se que em 50% dos casos o criminoso é desconhecido, o que, associado às informações da imprensa e aos Bons, permite sugerir que são homens de condição socioeconômica que lhes permite contratar advogados, fugir do flagrante e eventualmente nunca serem encontrados.
• Embora haja inúmeras contradições entre as informações dos BOs e dos processos, observou-se consistência quanto à cor: em 50% dos casos a vítima era branca. No caso dos réus, a percentagem é um pouco menor (29%) embora ainda predominem os brancos. Cerca de 36% das vítimas eram pardas e 1% negras. Entre os réus, 21% eram pardos e 8% negros. Num país de racismo oculto como o Brasil, em que se atribui quase sempre a responsabilidade da violência aos negros, estes dados vêm desmentir aquele preconceito.
• Quase a metade das vítimas era solteira. Uma em cada quatro era casada legalmente. Uma em cada dez vivia junto a um companheiro. Não importa o estado civil, portanto, todas tiveram um destino semelhante, foram vítimas de tentativa ou de homicídio.
• No caso dos réus, apenas um em cada quatro eram solteiros, 13% eram casados e outros 13% tinham uma companheira. Isso indica que os réus eram casados, mas não com as suas vítimas.
Constatamos que, do total de processos enviados aos Tribunais e que não foram a Júri ou estão sem julgamento definitivo: 50% foram arquivados (basicamente porque os criminosos não foram identificados); 24% estão suspensos (porque o réu está foragido), em dois casos foram impronunciados (pois as provas eram insuficientes) e em três foram absolvidos.
Apenas 14% dos réus foram julgados e condenados.
Em média, os processos não ficam muito tempo nos Tribunais: 46% ficam de um a dois anos. Mas o andamento, o excesso de vezes que as testemunhas devem ser ouvidas, as possibilidades de idas e voltas certamente facilita a fuga dos réus e a perda de contato com as testemunhas.
O problema, então, não está na suposta morosidade da justiça, mas nos trâmites legais que deveriam ser mais ágeis e limitados. Em nome da ampla defesa dos réus certos setores dos aplicadores do Direito subestimam a extensão e gravidade da violência praticada contra a mulher. É urgentíssima uma revisão do procedimento jurídico se quisermos, de fato, alterar a impunidade que cerca estes crimes, como expressaram vários juízes, promotores e advogados entrevistados.

Conclusão
Homicídios de mulheres fazem parte da realidade e do imaginário brasileiro há séculos, como mostra variada literatura de caráter jurídico, histórico, sociológico, revistas, notícias de jornal, além da dramaturgia, literatura de cordel, novelas de rádio e televisão, música popular, e a presente pesquisa. Depois de trinta anos de feminismo, que impôs à sociedade o "quem ama não mata" como repulsa ao assassinato justificado pelo "matar por amor" e de consistentes mudanças na posição socioeconômica e nos valores relativos à relação homem x mulher, como explicar que crimes de gênero continuem a ocorrer?
Reunindo-se os vários dados analisados, depreende-se que essa contradição perdura por várias razões, tais como: a persistente cultura de subordinação da mulher ao homem de quem ela é considerada uma inalienável e eterna propriedade; uma recorrente dramatização romântica do amor passional, sobretudo na televisão e no rádio, em que realidade e imaginário se retro-alimentam; na facilidade com que os procedimentos judiciais permitem a fuga dos réus; na pouca importância que as instituições do Estado dão à denúncia e ao julgamento dos crimes contra as mulheres e meninas.
Para enfrentar esta cultura machista e patriarcal são necessárias políticas públicas transversais que atuem modificando a discriminação e a incompreensão de que os Direitos das Mulheres são Direitos Humanos. Modificar a cultura da subordinação de gênero requer uma ação conjugada.
Para isso é fundamental estabelecer uma articulação entre os programas dos Ministérios da Justiça, da Educação, da Saúde, do Planejamento e demais ministérios.
Exemplo dessa desarticulação está na proposta de criação de mais Delegacias de Defesa da Mulher, instrumento muito importante, mas que tem de ser aparelhado em sua estrutura física, equipamento e ligação com as demais delegacias, com a Secretaria de Segurança, da Justiça, da Educação e demais órgãos do governo estadual e federal. Assim como o pessoal desta importante instituição precisa ser treinado permanentemente, as Delegacias pouco podem fazer se não estiverem inseridas em um programa de transformação da cultura da força e da violência de gênero.
Nos programas escolares – desde o ensino fundamental até o universitário – precisa haver a inclusão da dimensão gênero mostrando como a hierarquia existente na cultura brasileira de subordinação da mulher ao homem traz desequilíbrios de todas as ordens – econômico, familiar, emocional e incrementa a violência. Mas a escola não pode ficar isolada de um processo amplo de transformação para alcançar a equidade de gênero. O que pode fazer uma professora, de qualquer nível da escala educacional, se ela própria é violentada? O que pode ensinar um professor que é um violador? O que pode fazer a escola se estiver desligada de um processo de transformação cultural?
Políticas públicas transversais visando ao mesmo objetivo – a equidade entre homens e mulheres – constitui um caminho para alterar a violência em geral e de gênero em particular. A Secretaria dos Direitos da Mulher pode desempenhar este papel articulador, associando-se aos Conselhos ou Secretarias da Mulher em todos os Estados.
Destaque-se, sobretudo, que um planejamento de políticas públicas transversais só funcionará com a total participação da sociedade civil.
 
Nota
A pesquisa teve de incorporar a complexidade dos BOs, pois eles podem conter mais de uma vítima, referir-se a uma chacina com diversas vítimas, conter vítimas dos dois sexos, de várias idades. Podem, também, incluir mulheres agressoras.

Referências bibliográficas
BESSE, Susan K. Modernizando a desigualdade. São Paulo, Edusp, 1999.        [Links ]
BLAY, Eva Alterman "Direitos humanos e homicídio de mulheres". Projeto de Pesquisa Integrada apoiado pelo CNPq. Concluída em 2003. Ainda não publicada. Resumo dos dados encontra-se na página do NEMGE (www.usp.br/nemge).        [ Links ]
CONY, Carlos Heitor em Fatos e Fotos – Gente. Brasília, 22 de outubro de 1979, nº 948, ano XVII. Rio de Janeiro, Bloch Editores.        [ Links ]
KOERNER, Andrei "Posições doutrinárias sobre direito de família no pós-1988. Uma análise política". Em Fukui, Lia (org.). Segredos de Família. São Paulo, Annablume, 2002.        [ Links ]
MASSUNO, Elizabeth. "Delegacia de Defesa da Mulher: uma resposta à violência de gênero". Em BLAY, Eva A. Igualdade de oportunidades para as mulheres. São Paulo, Humanistas, 2002.        [ Links ]
SILVA, Evandro L. A defesa tem a palavra. 3ª ed., Rio de Janeiro, Aide Editora, 1991.        [ Links ]
ONU. World Conference on Human Rights. Vienna 14-25 June 1993. Vienna Decla-ration and Programme of Action.        [Links]
 Texto recebido e aceito para publicação em 15 de setembro de 2003
 Eva Alterman Blay é professora titular de Sociologia na USP e coordenadora científica do Nemge (Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero).
A autora agradece especialmente ao presidente do Tribunal Superior, Dr. Nigro Conceição, que compreendeu o interesse da pesquisa e facilitou o trabalho nos cinco Tribunais do Júri da capital de São Paulo. Agradece também o apoio obtido dos juízes presidentes dos Tribunais do Júri, Dr. Claudio Emanuel Graciotto, Dra. Maria Cristina Cotrose, Dr. Luiz Tolosa Neto, Dr. Camili Lellis dos Santos Almeida e Dr. João Carlo Sá Moreita de Oliveira. E à Dra. Adriana Gragnani pela colaboração na seleção e orientação das bolsistas de Direito e pela primeira leitura do resumo. E ao CNPq pelo apoio integral.

sábado, 24 de setembro de 2011

ECOLOGIA SOB UMA VISÃO MORAL E ÉTICA.

Como se acha ou em que pé se encontra a influência mesológica dos seres humanos nas áreas onde vivem e atuam? Como eles tratam o meio ambiente de que todos dependem? O grande brasileiro Ruy Barbosa, ao seu tempo, já ensinava algo mais ou menos assim: se cada pessoa limpar a frente de sua casa, a cidade toda será limpa. Numa análise macro-social, sendo a Terra o nosso lar, se não nos preocuparmos com o seu equilíbrio, como será a nossa vida e a das futuras gerações? Faz parte do progresso do ser humano que ele próprio destrua seu habitat?
Toda criatura consciente sabe que a moral é a regra de cada um conduzir-se no bem e, porque se funda na Lei Natural ou Lei de Deus, permite-nos facilmente distinguir o certo do errado. Compreendemos – porque todos são dotados de razão e de livre arbítrio – que o ato por nós praticado só é moralmente correto quando visa ao bem geral, ou seja, ao bem de todos, ao bem coletivo. E como não queremos o mal para nós, não devemos desejá-lo aos semelhantes.

O grande físico do século 20, Albert Einstein, em seu livro "Como Vejo o Mundo" (Editora Nova Fronteira), afirma: "E cada dia, milhares de vezes, sinto minha vida – corpo e alma – integralmente tributária do trabalho dos vivos e dos mortos. Sou realmente um homem, quando meus pensamentos e atos têm uma única finalidade: a comunidade e seu progresso".
No livro "Renúncia", de Emmanuel, psicografado por Chico Xavier, encontramos o seguinte: "O mundo material é uma tenda de esforços infinitos, onde fomos chamados a colaborar com o Criador no aperfeiçoamento de suas obras". Pode-se ler no livro "Palavras de Emmanuel", psicografado por Chico Xavier, que "o quadro social que existe na Terra não foi formado pela vontade do Altíssimo; ele é reflexo da mente humana, desvairada pela ambição e pelo egoísmo”. Noutro livro – "Pão Nosso" - de Emmanuel, também psicografado por Chico Xavier, temos esta lição: "A vida humana, apesar de transitória, é a chama que nos coloca em contato com o serviço de que necessitamos para a ascensão justa. Nesse abençoado ensejo, é possível resgatar, corrigir, aprender, ganhar, conquistar, reunir, reconciliar e enriquecer-se no Senhor".
Um resumo de Ética
Ética, para o filósofo Sócrates, é o estudo do procedimento ideal, da sabedoria de viver. Ética é, também, o ramo da filosofia que trata da essência, da origem e do caráter da moral; cuida da consciência moral e do livre arbítrio. Ética profissional é o conjunto de princípios que exige de cada integrante desta ou daquela carreira o dever moral de cumprir a lei e atuar com probidade. Ética, na visão do Espiritismo, tem sua base na Lei Natural, ou Lei de Deus, ou Lei Moral, nela estabelecendo-se a medida da Justiça Divina: "Não fazer ao semelhante o que, naturalmente, não deseja para si mesmo".
Em "O Homem Integral" (Alvorada Editora, Salvador, BA, 1996, p.53/46), Divaldo Pereira Franco, pelo Espírito Joanna de Angelis, ao tratar da consciência ética, encontramos que "o homem é o único ‘animal ético’ que existe. Não obstante, um exame da sociedade, nas suas variadas épocas, face à agressividade bélica, à indiferença pela vida, à barbárie de que dá mostras em inúmeras ocasiões, nos demonstra o contrário". E mostra que o indivíduo deve fazer um mergulho introspectivo para se conhecer melhor como um membro responsável da sociedade humana, da qual sempre necessita. E, amadurecendo psicologicamente, tal indivíduo assume a sua parte na humanidade. Aí, "as ações humanitárias são o passo que desvela a consciência ética no indivíduo, que já não se contenta com a experiência do prazer pessoal, egoísta, dando-se conta das necessidades à sua volta, aguardando-lhe a contribuição". E complementa: "A consciência ética é a conquista da iluminação, da lucidez intelecto-moral, do dever solidário e humano".
 
Ao falarmos do ter e do ser, mostramos que "cunhou-se o conceito irônico de que o dinheiro não dá felicidade, porém ajuda a consegui-la. Ninguém o contesta; no entanto, ele não é tudo". Mas, argumenta Joanna de Angelis que "cada indivíduo tem suas próprias aspirações e metas, não podendo ser movido, pelo prazer insano ou com bons propósitos que sejam, por outras pessoas". E conclui: "A integridade e a segurança defluem do que se é, jamais do que se tem".
Portanto, a nossa existência no planeta Terra é uma etapa de aprendizado na prática do bem, única forma correta de exemplo e progresso moral para o ser humano. Não devemos jamais esquecer essa realidade. E o Espiritismo é, por excelência, uma doutrina ética, embora possa haver quem se diga espírita e não procure exemplificar no exercício eticamente cristão... Mas a cada um será dado segundo o seu merecimento, nesta e noutras existências.
Questões morais e o egoísmo
Há os que sofrem na vida as mais diversas dores morais e materiais, ora envolvendo o analfabetismo, o desemprego, a fome, o abandono, o descrédito, as injustiças, o desabrigo, a falsidade, a decepção, assim como as doenças, agressões, mortes, arbitrariedades, prisões, castigos corporais e toda a sorte de crueldades.
Em "O Livro dos Médiuns", de Allan Kardec (tradução de Herculano Pires, Editora LAKE, 23ª edição, Capítulo XXXI – Dissertações Espíritas – item III), há a manifestação de Jean Jacques Rousseau, nos seguintes termos: "A meu ver, o Espiritismo é uma alavanca que derruba as barreiras da incompreensão. A preocupação com as questões morais está sendo despertada por toda parte. Discute-se a política que desperta o interesse geral; discutem-se os interesses particulares; despertam paixões o ataque ou a defesa de personalidades; os sistemas conquistam partidários e detratores; mas as verdades morais, que são o alimento da alma, o pão da vida, permanecem na poeira acumulada pelos séculos".
Dentre as mais graves imperfeições humanas, destaca-se o egoísmo como praga social; e ele só "se enfraquecerá com a predominância da vida moral sobre a vida material". Logo após a questão 917, em "O Livro dos Espíritos", da Allan Kardec (Edição FEESP, tradução de Herculano Pires), há uma mensagem do Espírito Fénelon, mostrando ser necessário combater o egoísmo, "como se combate uma epidemia. Para isso, deve-se proceder à maneira dos médicos: remontar à causa. Que se pesquisem em toda a estrutura da organização social, desde a família até os povos, as influências patentes ou ocultas que excitam, entretêm e desenvolvem o sentimento do egoísmo".E reconhece que a cura para esse grande mal – o egoísmo – será a educação, "não essa educação que tende a fazer homens instruídos, mas a que tende a fazer homens de bem".
Falta de consciência e o efeito paralelo
Se todos os seres humanos seguissem à risca as condutas Morais e Éticas especialmente, a Lei de Justiça e Amor  -, as leis do Estado, os códigos estabelecidos pelos homens, por via legislativa, seriam desnecessários! Mas os seres humanos ainda não aprenderam viver fraternal e pacificamente em sociedade. Por isso, faz-se imprescindível a Lei Humana, que, ao mesmo tempo em que "dá direitos, impõe deveres", a fim de que haja um mínimo de equilíbrio na vida social, em todos os cantos deste ‘planeta de provas e expiações’. Aliás, isso está bem assente na resposta à questão 877, em "O Livro dos Espíritos". Basta uma breve leitura aos interessados.

Em regra, pelo costume e pela insensibilidade em relação ao nosso semelhante, costumamos defender e usar aquilo de que gostamos, sem a menor preocupação com os outros, suas preferências, sua contrariedade, suas alergias, sua saúde etc. Por exemplo, aos viciados em fumo, bebida e drogas, mesmo cientes de que são males perigosos para si e para os outros, quem não os acompanhe ou concorde com seus costumes, em geral, são uns "quadrados", "metidos" ou "chatos". Como se vê, até pelos males de que são acometidos, falta-lhes a consciência moral ensinada pelos Espíritos do bem. (Aliás, lembramo-nos agora das últimas estatísticas da OMS – Organização Mundial de Saúde –, informando que, anualmente, morrem de câncer cinco milhões de pessoas no mundo, sendo a maioria delas por motivo do fumo!).
A propósito, o escritor Ruy Castro, no artigo "Notícias do fumacê" (jornal Folha de S.Paulo, 23-4-2008, p. A-2), noticiou que pesquisadores canadenses, em estudo científico publicado na revista "Chemical Research Toxicology", afirmaram que a fumaça da maconha apresenta mais substâncias tóxicas do que o fumo comum, verificando-se que um ‘baseado’ de Cannabis contém "uma quantidade de amônia equivalente a 20 cigarros comerciais". E argumenta que os fumantes passivos de maconha estão sujeitos aos mesmos riscos que os viciados. E, por isso, na Grã-Bretanha, em atenção aos alertas dos agentes sanitários, "o governo classificou a maconha na lista das drogas perigosas", fazendo-a sair do grupo C (de remédios controlados) para o grupo B (das anfetaminas), significando "que, a partir de agora, os britânicos apanhados com a erva estarão sujeitos a prisão e multa, e não apenas à apreensão".
A propósito da realidade dos fumantes passivos, nos dias atuais, existe um grande músico e compositor popular brasileiro que, sem jamais fumar ou usar drogas, e sem notícia da doença na família, se descobriu com um câncer no pulmão, em estado avançado, tudo pelo fato de haver, por mais de 30 anos, vivido em estúdios de gravações e em seus corredores, inalando fumaça de cigarros de músicos, cantores e outros artistas.
A quantas andam as nossas ações?
Temos agrotóxico em excesso nas verduras e frutas (alface, batata, maçã, morango, berinjela, pepino, cenoura, beterraba, banana, mamão, laranja, e outras) para evitar prejuízos ao produtor, mas sem a mesma preocupação com os eventuais danos aos consumidores, que somos todos nós.
No que tange à poluição do ar e das águas, e com as cidades ‘ficando nuas’ de árvores, vemos outros maus exemplos: milhares de empresas lucrativas, mas que emitem volume insuportável de gás carbônico. Muitas delas, inclusive, dando de ombros à saúde da população, têm suas ações e seus títulos comercializados nas bolsas de valores, para bons lucros aos seus adquirentes, que se lembram apenas das variações em cifras, sem jamais perguntarem as quantas pessoas estão ofendendo, direta ou indiretamente!

Não bastassem o abate das baleias, das focas, dos golfinhos, das tartarugas, e o despejar de detritos no mar e nos lagos, verifica-se, por força da fumaça da grande indústria e das queimadas, que o aquecimento global continua, com geleiras se derretendo e os mares crescendo a níveis nunca antes vistos, cobrindo pequenas ilhas, invadindo vilas e cidades, desalojando e mesmo dizimando pessoas. (E há, ainda, quem se oponha ao trabalho sério e de abnegada consciência do movimento "Greenpeace" e de ONGs que lhe seguem os passos, em defesa da vida humana e animal sobre a Terra!).
Agora, em razão das dificuldades dos combustíveis fósseis e de sua carga poluidora, descobriu-se a fonte renovável dos bicombustíveis - que já não precisam apenas de conhecimento tecnológico para a sua produção, mas também de análise lógica, a fim de não haver risco, presente ou futuro, de escassez ou falta de comida para o povo! (Porque de nada vale ter uma geladeira, um fogão e um veículo com a melhor tecnologia, se não houver alimentos abundantes e saudáveis para os seus contentes possuidores!).
Do que trata a Ecologia?
Tudo que se relaciona aos organismos vivos e ao seu "habitat" é objeto de estudos da Ecologia. Aliás, em sua origem grega, essa palavra – ecologia – liga-se ao lugar onde alguém mora, significando o lar ou a casa. Os estudiosos dessa matéria pesquisam o modo de vida dos seres, os meios de que dispõe na natureza, a influência entre a flora e os animais, analisando os elementos físicos e químicos, preocupados com a preservação dos bens materiais, visando ao equilíbrio das espécies. Destarte, considerando que a Terra, como um todo, representa um grande ecossistema, a Ecologia tem a finalidade de concentrar estudos e preocupação nas atividades dos seres humanos, a fim de todos usem corretamente os recursos que a natureza lhes põe à disposição.
Infelizmente, é ainda o ser racional – o ser humano, e não os animais irracionais – que pratica ou aceita atos desastrosos contra o ecossistema do planeta. Temos ouvido falar e também lido a respeito de problemas como desflorestamento, desertificação, extinção de espécies animais e vegetais, deteriorando as águas, destruindo a camada de ozônio e tantas outras tristes realidades, tendo como causadores, por motivo de egoísmo, guerra, revoluções, vaidade ou ignorância social, os próprios seres humanos, que se dizem ‘civilizados’.
Observe-se que os animais não canalizam esgotos para os mananciais de água potável; não fazem campeonatos de caça e pesca, sacrificando criaturas da natureza em busca de troféus; não realizam queimadas sobre vegetais e seres vivos; não experimentam artefatos mortíferos nos mares e no ar, disseminando a poluição; não devastam as selvas, sem controle, em busca de lucros; não lavam calçadas ou quintais com água tratada, cloretada e fluoretada, enquanto muitos não podem sequer tomar banho por falta do líquido e alguns até sofrem sede... Somente os seres humanos, "seres racionais e civilizados", muitos dos quais diplomados, formalmente intelectualizados, fazem tudo isso e muito mais! São "túmulos caídos por fora...".
Trabalho de uma mulher de fibra
Setores do governo federal detectaram que, dos 36 municípios brasileiros que desmatam na área amazônica, conforme notícia do jornal Folha de S.Paulo (23-4-2008), destaca-se o Município de Marcelândia, em Mato Grosso, onde se descobriu, em março de 2008 e numa única área, um desmatamento superior a 25 vezes o tamanho do Parque Ibirapuera, em São Paulo! De acordo com os órgãos governamentais, "de agosto de 2006 a julho de 2007, foram registrados 4974 quilômetros quadrados a menos de floresta no Brasil!".

É de se destacar o trabalho insano da atual Ministra do Meio Ambiente, Senadora Marina Silva, mulher que sempre viveu na Amazônia e que, mesmo combalida pela malária (reincidente, várias vezes), tem mantido uma luta constante contra o desmatamento irregular do nosso "mundo verde", opondo-se ao perigo da desertificação e da esterilização do solo de grandes áreas. Graças ao seu empenho, desde muito jovem e com outras lideranças brasileiras, incluindo o saudoso Chico Mendes, tem-se registrado certa redução do desmatamento e da agressão ao meio ambiente, mas ainda é pouco, porque o assunto requer educação e sensibilidade de ricos e pobres. A criação de gado e o plantio de soja, bem como o corte de madeiras lei, velhas e raras (às vezes, com 100 ou mais anos), e a produção de carvão, tudo é feito com o desmatamento e as queimadas, nem sempre com o replantio e a reposição. Isso deve ser objeto de cuidados técnicos sustentáveis, pois, embora ocorra o trabalho de pequena mão de obra local e reverta em milhões de reais aos empresários do setor, resulta em perigosa atividade, prejudicial à fonte de oxigênio, com o desaparecimento das árvores. Sem oxigênio, as doenças crescem e a vida humana se esvai.
Controle legal do predador
Conceitualmente (até porque as leis naturais não podem ser revogadas pelos seres humanos, que não as criaram, pois que delas tudo se origina), de algum tempo até esta data, as pessoas mais lúcidas e estudiosas começaram a se preocupar com a Natureza, com vistas a seu equilíbrio para a manutenção da vida sobre a face da Terra. Por isso, para controlar seu maior predador – o próprio ser humano -, o Estado vem procurando se organizar juridicamente, com instrumentos adequados, para preservar o meio ambiente e garantir a sobrevivência dos terráqueos. Em nossa Constituição Federal, no artigo 225, encontramos normas de Direito Ambiental. Em "Curso de Direito Administrativo" (Editora Forense, Rio, 1998, 11ª edição, páginas 391 a 406), o Professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto faz uma análise objetiva dessa matéria, sob o título de Direito Administrativo Ambiental. E há inúmeras leis federais a esse respeito, visando à preservação da vida e à preservação dos elementos físicos da natureza, cuidando do ser humano, da fauna e da flora, contra a poluição e a catástrofe ecológica, numa preocupação constante com os recursos naturais, terrestres, hídricos e aéreos.
Desta forma, ao poder público cabe estabelecer normas para preservar a água (salgada e doce), assim como a flora, a fauna, o ar e o clima, e ainda cuidar da fertilização do solo, reconstituir locais de erosão, proibir a derrubada de florestas e proteger espécies em extinção. Podemos citar, além do artigo 225 da Constituição, algumas leis federais: Lei nº 7802, de 11/07/1989 (sobre danos ao meio ambiente); Lei nº 9605, de 12/02/1998 (sobre crimes ambientais); Lei n º 9649, de 27/05/1998 (que trata do Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal); Lei nº 8974, de 05/01/1995 (sobre a preservação da diversidade do patrimônio genético e do controle de substâncias com riscos para a vida e o meio ambiente); Lei nº 6383, de 31/08/1981 (sobre política nacional do meio ambiente); e ainda podem ser citadas as leis nº 5197, de 03/01/1967 (Código de Caça); Lei nº 4771, de 15/09/1965 (Código Florestal); Decreto-Lei nº 22, 28/02/1967 (Código de Pesca); Decreto – Lei nº 227, de 28/02/1967 (Código de Mineração), acrescentando-se, ainda, o Decreto-Lei nº 1808, de 07/10/1980 (sobre proteção ao programa nuclear brasileiro). Portanto, no que tange à Lei dos Homens ou Lei do Estado, a preocupação com o Meio Ambiente, matéria afeta à ecologia, parece que estamos bem servidos. Mas como se acha o comportamento moral dos seres humanos, que é regido pela Lei de Deus, ou Lei Moral, ou Lei da Natureza, em relação às atitudes com os seus semelhantes e com os irmãos irracionais?

Menos egoísmo e mais fraternidade
"Deus, causa primária de todas as coisas e inteligência suprema", sempre concede aos seres humanos todos os meios de que estes necessitam, fazendo a Terra produzir os bens essenciais aos seus habitantes. A Natureza não é imprevidente, mas os seres humanos, muitos deles diplomados, vaidosos e egoístas, nem sempre equilibram o necessário e o supérfluo. Como se verifica da Lei Natural de Conservação, as carências e as dores dos indivíduos na organização social decorrem de suas próprias mazelas, tais como ambição, ociosidade e falta de previdência. Se não reconhecemos falhas nossas, na vida presente, por certo, trazemos débitos morais do passado. Até porque, como ensina o filósofo Jiddu Krishnamurti, "o ser humano ignorante não é aquele sem instrução; é aquele que não conhece a si mesmo!".
Assim, "cada um recebe segundo seu merecimento", conforme a lei natural. Não se trata de castigo divino, porque Deus não premia nem despreza o ser humano. Cada um de nós é dotado de livre-arbítrio e sabe distinguir, claramente, o certo do errado, o bem do mal. E, na caminhada terrena, de provas e expiações, devemos fazer bom uso do senso moral. Não devemos realizar um discurso em defesa da ética, do bom proceder, apenas para os ouvidos e as palmas dos circunstantes e, em seguida, hipocritamente, praticar tudo aquilo que condenamos! Todos já ouvimos críticas àqueles que "cospem para cima e o cuspe lhes cai no rosto", bem como dos que "não devem sujar em sua nascente a água corrente que nos mata a sede mais abaixo", etc. E por que não agimos como falamos? Dominemos o egoísmo e respeitemos a Natureza, para que a fraternidade nos faça seres humanos éticos.
...........................................................................................................................................
(*) BISMAEL B. MORAES, advogado, Mestre em Direito Processual pela USP, autor de 12 livros jurídicos e de literatura, é membro da União dos Delegados de Polícia Espíritas do Estado de S.Paulo – UDESP - e trabalhador do Centro Espírita Ismael, no bairro do Jaçanã, na Zona Norte da Capital.
São Paulo, maio de 2008

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

POLÍTICA : A arte ou ciência de governar

                 Você sabia que quem não se interessa por política, acaba sendo governado por aqueles que se interessam? É isso mesmo. As decisões do governo de um país dizem respeito diretamente a todos aqueles que vivem ali. Delas dependem, por exemplo, o preço das coisas, a qualidade das escolas, dos hospitais e dos medicamentos, e até a possibilidade de acessar livremente a Internet - o que os chinese estão proibidos de fazer pelo governo comunista de Pequim.

Levando em consideração o fato de a política interferir na vida de todos nós, é fácil concluir que não é conveniente para ninguém ser completamente ignorante em matéria de política. Para compreender bem a questão, entretanto, é necessário recorrer aos estudos históricos, pois as atividades políticas são tão antigas quanto a própria humanidade.
Um pouco de filosofia
A palavra política deriva do grego "politikós", adjetivo que significa tudo o que se refere à cidade (em grego, "pólis"). Mas o conceito de "pólis" é mais abrangente do que o nosso conceito de município. Na Grécia antiga, entre os séculos 8 e 6 a.C, surgiram as "pólis", que eram, ao mesmo tempo, a cidade e o território agropastoril em seus arredores, que formavam uma unidade administrativa autônoma e independente: uma cidade-estado, quase como um país nos dias de hoje. Atenas e Esparta são as cidades-Estado mais famosas da Antiguidade grega.

De qualquer modo, inicialmente, a expressão política referia-se a tudo que é urbano, civil, público. O significado do termo, porém, expandiu-se graças à influência de uma obra do filósofo Aristóteles (384-322 a.C), intitulada Política. Nela, o filósofo desenvolveu o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado - ou seja, o conjunto das instituições que controlam e administram um país - e sobre as várias formas de governo.

Política, então, passou a designar a arte ou ciência do governo, isto é, a reflexão sobre essas questões, seja para descrevê-las com objetividade, seja para estabelecer as normas que devem orientá-la. Durante séculos, o termo passou a ser usado para designar obras dedicadas ao estudo das atividades humanas que de algum modo se refere ao Estado. Entretanto, nos dias de hoje, ele perdeu seu significado original, que foi gradativamente substituído por outras expressões, como "ciência política", "filosofia política", "ciência do Estado", "teoria do Estado", etc. Política passou a designar mais as atividades, as práticas relacionadas ao exercício do poder de Estado.
Política e poder
Entendido como forma de atividade ou de prática humana, o conceito de política, está estreitamente ligado ao conceito de poder. O filósofo britânico Bertrand Russell  (1872-1970) define o poder como "o conjunto dos meios que permitem alcançar os efeitos desejados". Um desses meios é o domínio do ser humano sobre a natureza. Outro é o domínio de alguns homens sobre outros homens.

Neste último sentido, podemos ampliar o conceito de poder definindo-o como uma relação entre dois sujeitos, dos quais um impõe a sua própria vontade ao outro, determina-lhe a maneira de se comportar. O domínio sobre os homens, contudo, não é geralmente um fim em si mesmo. De acordo com Russell, trata-se de um meio para obter "alguma vantagem".

Está claro que o poder político pertence à categoria do poder do homem sobre o outro homem (e não sobre a natureza). Essa relação de poder pode ser expressa de mil maneiras, como a relação entre governantes e governados, entre soberanos e súditos, entre Estado e cidadãos, etc. Porém, é importante ressaltar que há várias formas de poder do homem sobre o homem e que o poder político é apenas uma delas.
Dinheiro, ciência e armas
É possível distinguir três grandes tipos de poder do homem sobre o homem. Para começar, há o poder econômico, exercido quando alguém se vale da posse de certos bens para levar aqueles que não os possuem a certo tipo de comportamento, que, em geral, é a realização de algum tipo de trabalho. Evidentemente, esse é o poder que o patrão exerce sobre os seus empregados.

Mas há também o poder ideológico, o poder das idéias, do saber, do conhecimento, que permite o domínio sobre a natureza. Esse poder tem sido exercido pelos "sábios" ao longo da história. Nas sociedades primitivas, eram os sacerdotes. Nas sociedades contemporâneas, são os intelectuais ou cientistas. Pense, por exemplo, no poder que um médico pode exercer sobre o seu paciente, já que dispõe do conhecimento necessário para lhe devolver a saúde.

Finalmente, existe o poder político, que se baseia na posse dos instrumentos mediante os quais se exerce a força física (as armas e toda espécie de potência): é o poder de coação, no sentido mais estrito da palavra. Exemplo: se alguém desobedecer a uma determinada lei, o governo tem poder para ordenar a sua prisão por policiais. Em caso de resistência, os policiais têm até o direito de usar suas armas.
Poder político é o poder supremo
Por se tratar de um poder cujo meio específico é a força, o poder político é o poder supremo, ao qual os demais estão subordinados. Embora o uso da força seja o elemento que distingue o poder político dos demais, esse uso é uma condição necessária, mas não suficiente, para tornar a sua existência legítima. Não é qualquer grupo social em condições de usar a força - como os narcotraficantes, por exemplo - que exerce o poder político.

O poder político conta com a concordância de toda a sociedade para usar a força, para ter o seu monopólio, inclusive com o direito de incriminar e punir todos os atos de violência que não sejam executados por pessoas autorizadas.

Isso se torna mais claro quando se pensa na execução de alguém que cometeu um assassinato, nos países onde há pena de morte. Nesses lugares, o Estado tem o direito de tirar a vida de um cidadão para puni-lo por seu crime - embora esse direito seja cada vez mais questionado pela sociedade e pelos cientistas jurídicos.
Limites do poder político
Além da exclusividade do uso da força, ainda podem ser apontadas como características do poder político: a universalidade, ou seja, a capacidade de tomar decisões que valham para toda a coletividade, no que se refere à distribuição e destinação dos recursos (naturais, humanos e econômicos) no seu território; e a inclusividade, isto é, a possibilidade de intervir em todas as esferas de atividade do grupo e de encaminhar essa atividade ao fim desejado, por meio das leis, ou seja, as normas ou regras destinadas a todo o grupo.

Isso não quer dizer, todavia, que o poder político não tenha limites, mas estes variam de acordo com o tipo de Estado. O Estado socialista, por exemplo, estende seu poder à esfera econômica e planeja como a economia deve caminhar. Já o Estado liberal clássico (capitalista) não aceita a intervenção nessa área, deixando que a economia seja regulada por suas próprias necessidades e características peculiares.

No Estado totalitário, como as ditaduras, o poder político se intromete em qualquer campo da atividade humana. Entre 1922 e 1943, na Itália, a ditadura fascista de Benito Mussolini chegava a dar prêmios a casais que tivessem muitos filhos, pois estavam gerando cidadãos para servir ao Estado.
Objetivo da política
Por fim, é conveniente lembrar que até agora se tratou dos meios da política. Mas ela também tem um objetivo, uma meta, uma finalidade. Uma finalidade mínima e básica, que é comum a toda e qualquer atividade política: a ordem pública nas relações internas do país e a defesa da integridade nacional nas relações exteriores, de um Estado com os outros Estados.

Esta é a finalidade mínima porque é a condição essencial para a obtenção de todos os demais fins (desenvolvimento econômico, segurança e saúde, educação, etc.) que, generalizando, devem garantir o bem-estar do povo. Até mesmo o partido que subverte a ordem não faz isso como um objetivo final, mas como fator necessário à mudança da ordem existente e a criação de uma nova ordem.




·  Deus
·  Aborto
*Antonio Carlos Olivieri é escritor, jornalista e diretor da Página 3 Pedagogia e Comunicação.